"Falhámos, não temos comunidades terapêuticas, não temos um sistema oleado onde as pessoas vão fazer o seu tratamento, temos poucas vagas de internamento, não temos praticamente psiquiatras a trabalhar no problema das adições".
Não estamos a falar de uma qualquer opinião partidária, de uma posição anti-governo nem de opiniões destituídas de conhecimento sobre a realidade dos consumos, das dependências e da evidência que, no fundo, é sentida e refletida pelos cidadãos no dia a dia. Estamos a falar de Daniel Neto, psiquiatra, que já foi diretor do serviço no SESARAM. Em declarações à Antena 1 Madeira/RTP. Para ouvir, interpretar e servir de suporte para uma ação mais incisiva.
O médico expõe um cenário que deve merecer a maior reflexão por parte das entidades responsáveis pela Saúde. Diz que a prevenção falhou e é assim há 14 anos: "Falhámos, não temos comunidades terapêuticas, não temos um sistema oleado onde as pessoas vão fazer o seu tratamento, temos poucas vagas de internamento, não temos praticamente psiquiatras a trabalhar no problema das adições. Temos vídeos muito bonitos mas quantas dessas pessoas que se encontram na margem e na susceptibilidade de irem consumir é que vêem esses vídeos?".
O médico admite que há um cobtributo dos médicos da Medicina Familiar mas os médicos psiquiatras estão a fazer pouco no âmbito das adições. Há falta de consultas, há falta de investimento sério e de dedicação. Se temos, na Madeira, um problema tão sério nas adições, porque razão não formamos mais profissionais para trabalharem nesse domínio? Por exemplo, temos um bom centro de tratamento do álcool, a Casa de Saúde São João de Deus. Mas qual é o seguimento pós alta? Os senhores enfermeiros, porque psiquiatras no acompanhamento gratuito, como de resto aconteceu com o tratamento, não há".
Claro que estas posições críticas originaram reações que visam reduzir a dimensão do problema e "meter a cabeça na areia", o que decorre um pouco de um certo "modus operandi" da política madeirense em função do meio pequeno onde todos se conhecem e há como uma proteção coletiva perante o erro. E as reações foram de tal ordem que o médico sentiu necessidade de explicar e referir um princípio basilar que o 25 de abril de 74 permitiu mas que passados 49 anos ainda tem interpretações e práticas conforme interessa: "Aos que criticam desconhecendo os factos, não façam isso. Todos temos direito a opinião, mas não espalhemos aquilo que dizemos em casa descontraidamente, com o que são opiniões técnicas. Vamos evitar trazer mais desinformação, para além daquela que já existe", escreve Daniel Neto.
O médico não se assusta com essa pressão e acrescenta para quem quiser ler: "Considero que como cidadão e profissional de saúde, fiz o que estava ao meu alcance para chamar a atenção para este problema, dei a minha contribuição sempre que me foi pedida, mesmo arriscando a insatisfação de colegas e outros profissionais de saúde, bem como o despedimento. Que o tratamento está a falhar, é fácil de perceber porque há imensas pessoas a consumir. Que a prevenção está a falhar, é fácil de perceber porque há imensas pessoas a precisar de tratamento. Que o problema é sobretudo da região e não do continente, também é verdade, porque no continente não existem estes problemas com a mefedrona. No hospital onde trabalhei e que o serviço de urgência até há pouco tempo dava resposta a meio milhão de pessoas da região de Lisboa, entre 2012 e 2017 vi 2 casos e os outros colegas viram números idênticos".
Entre as questões colocadas pelos críticos da crítica do clínico estava esta, também legítima, mas que encerra em si um princípio de que quem ocupa um cargo de liderança de um serviço e departamento, nunca mais pode falar ou criticar esse serviço, uma espécie de selecionar o direito à opinião. A pergunta foi esta: "Quando era ele que mandava no serviço de psiquiatria do sesaram, estava tudo bem. Agora, que ele não está, as coisas não estão boas.”
Daniel Neto respondeu: "Em 2021, fui diretor do serviço de psiquiatria por 6 meses e voltei a dar prioridade a esta questão, para além de aumentar os recursos humanos dedicados às adições. Pela primeira vez na RAM foram apresentados publicamente os resultados objetivos da Saúde Mental. Nesta, salientei por diversas vezes o problema das adições, sobretudo da mefedrona. O claro aumento dos gráficos de internamento em que a mefedrona tornou-se a principal substância em tratamento, mostram como o problema cresceu. Se as consultas também aumentaram de número e os profissionais a realizarem-nas eram os mesmos, foi também por agravamento da necessidade da população. Para além deste momento com a presença de vários representantes de estruturas públicas e privadas da região, facilitei ainda várias entrevistas, entre elas ao Expresso, para chamar a atenção que precisamos de dedicar-nos a este problema".
E tem esta declaração, também ela para refletir: "Como tantas outras pessoas, sim, tenho medo do que me pode acontecer. Mas o meu medo até agora tem sido maior pelo rumo que a Madeira leva em relação a este problema e de como, no geral, não acontecem as mudanças necessárias".
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