PIDDAR: a capacidade de mostrar o que não se quer cumprir
- Henrique Correia
- 15 de jun.
- 6 min de leitura
A leitura do documento é de Nuno Morna, aponta o que diz ser a "vacuidade". Pesquisa extensa, mordaz, como é caraterística da escrita do ex-deputado da IL. Fala no "medo de expor a ruína moral de um sistema que vive da aparência da obra".

Esta segunda-feira, 16 de junho, começa a apreciação, na Generalidade, das Propostas de Orçamento da RAM e do Plano e Programa de Investimentos e Despesas de Desenvolvimento da Região. Um documento que o ex-deputado da IL Nuno Morna considera não ser propriamente um plano, mas "uma coreografia enfadonha de intenções vagas, de palavras esvaziadas de substância, de burocracia com pretensões de poema técnico".
Para Nuno Morna "não há plano, há maquilhagem. Não há governação, há despesa. E, no fim, não há autonomia, mas apenas um teatro de sombras encenado com fita métrica, formulários europeus e a pantomina de uma estratégia que nunca chegou a sê-lo. O PIDDAR 2025, esse nome pomposo como as fardas de cerimónia das Esquadras de Navegação Terrestre, é, talvez, o documento mais acabado de uma política feita de contabilidade e faxina, de pagamentos a tempo e horas a empreiteiros certos e de fotografias ao lado de máquinas escavadoras, com sorrisos plastificados como os dos manequins que se amontoam nos saldos da Rua Fernão de Ornelas. Dizem-nos, de modo cerimonioso e em tom de liturgia orçamental, que este plano representa o futuro da Região Autónoma da Madeira. Não representa. O que representa, com uma fidelidade arrepiante, é o medo. O medo de pensar. O medo de reformar. O medo de expor a ruína moral de um sistema que vive da aparência da obra e da ausência do resultado. É o medo de governar".
O ex-deputado na Assembleia Regional acrescenta que "este não é um plano de investimento. É um manual de sobrevivência do regime. Uma teia intricada de compromissos tácitos com as clientelas habituais, com os prestadores de serviços que orbitam em torno do aparelho de Estado como satélites gastos e previsíveis. O PIDDAR 2025 é, por isso, a expressão de um poder que perdeu a capacidade de imaginar. Que substituiu a política pela gestão. Que desistiu de pensar a Madeira como um espaço de emancipação e a tornou numa colónia orçamental da União Europeia, onde cada euro investido é contabilizado com zelo e cada ideia nova é vista como uma ameaça à estabilidade do favor"
Nuno Morna não se põe com "meias medidas", nunca foi, e a seu favor tem uma ação relevante como deputado da Iniciativa Liberal no Parlamento. No seu estilo crítico e mordaz, o ex-deputado considera, sobre o PIDDAR, que "se Deus existisse e tivesse sentido de humor, seria lido em voz alta nas salas de tortura da PIDE como método alternativo ao afogamento simulado. Mas como o Altíssimo parece ter abdicado da jurisdição sobre o arquipélago há mais de uma década, talvez por exaustão, talvez por descrença, cá estarei eu a pô-lo à disposição de quem tiver paciência, estofo e estoicismo de o descarregar e ler".
E dessa leitura, que aqui reproduzimos apenas uma curta parte, tira-se que classifica como havendo uma "obsessão pela infraestrutura sem propósito. Estradas requalificadas para ligar zonas despovoadas, edifícios públicos renovados que albergam serviços redundantes, centros tecnológicos erguidos sem tecnologia, projectos de “digitalização” cuja única função é dar a aparência de modernidade a processos administrativos que continuam a depender de papel e carimbo. A Região vive há décadas sob a lógica da inauguração: o corte da fita, a fotografia institucional, a nota de imprensa, o post nas redes sociais. O PIDDAR 2025 é o compêndio técnico dessa lógica: um calendário de obras e aquisições que visa, mais do que o desenvolvimento, a reprodução simbólica do poder".
E mais: "Mais grave ainda do que a falta de visão é a ausência total de avaliação. Em nenhum momento se propõe um sistema robusto de medição de impacto. Os indicadores são burocráticos: número de projectos iniciados, percentagem de execução, metros quadrados reabilitados. Mas não se pergunta, porque seria escandaloso, se as pessoas viverão melhor, se o território será mais coeso, se a economia será mais autónoma, se o conhecimento será valorizado, se a cidadania será mais livre. A avaliação é substituída por uma contabilidade anémica que contabiliza despesas como se isso bastasse para legitimar um plano de desenvolvimento.
Na Madeira, os projectos inovadores têm direcção política antes de terem conteúdo. São nomeados antes de existirem. E morrem muitas vezes na mesma semana em que são inaugurados, asfixiados pela burocracia, pelo desinteresse, pela ausência total de exigência. O que interessa, no fundo, é que existam para poderem ser apresentados. O que interessa é a capacidade de mostrar o que não se quer cumprir. O PIDDAR é, também neste aspecto, exemplar: um catálogo de intenções que se extinguem no acto de serem anunciadas. Como se o futuro fosse um palco onde se ensaia uma peça que ninguém tem intenção de estrear.
Mais obsceno, porém, é o tratamento dado à pobreza e à exclusão social. As palavras são generosas. O texto é cheio de afecto institucional. Mas as acções previstas são variantes do velho assistencialismo que garante votos e perpetua dependências. Em lugar de criar mobilidade social através da educação exigente, do mercado de trabalho dinâmico, da habitação acessível baseada no rendimento e não na lista de espera, o plano aposta na manutenção das redes de subsidiação. O objectivo não é libertar o indivíduo. É mantê-lo num estado de tutela permanente, como se a autonomia pessoal fosse uma ameaça e não uma meta da política pública. Não se combate a pobreza distribuindo esmolas com nome moderno, combate-se removendo os obstáculos que impedem a livre escolha, o risco, o mérito, a mobilidade. Mas esses obstáculos não são removidos porque são o cimento do sistema clientelar que sustenta o regime.
Começa logo pela linguagem: uma sucessão de termos que ninguém fora do circuito do financiamento europeu conseguiria repetir sem tropeçar, inclusão activa, abordagem territorial integrada, plataformas colaborativas, sinergias intersectoriais. É uma espécie de glossário para iniciados, uma missa dita em latim técnico onde a compaixão foi substituída pelo protocolo e o combate à pobreza se confunde com gestão de parcerias. O pobre, esse, continua a existir na fila do supermercado, na renda que não paga, na escola onde os filhos recebem almoços gratuitos, mas no plano, não passa de um número dentro de uma tabela que alimenta indicadores para relatórios que ninguém lê.
E depois há a pobreza, tratada como um fenómeno atmosférico. Paira, mas não se vê. Não se quantifica, não se localiza, não se descreve. Fala-se de “territórios vulneráveis” sem dizer quais, de “públicos prioritários” sem os identificar, de “dinâmicas sociais desfavoráveis” sem coragem para lhes chamar pelo nome: desemprego estrutural, habitação indigna, velhice sem rede, juventude sem futuro. O documento trata o problema como se se limitasse a uma falha na comunicação entre departamentos. Como se os pobres não fossem pobres, apenas mal atendidos.
Cada medida enunciada parece retirada de um guião de evento institucional: projectos-piloto, centros de proximidade, planos locais de intervenção, reforço da participação. Tudo conceitos vagos, todos repetidos até à náusea, todos sem substância. O objectivo, percebe-se, não é transformar, é parecer que se transforma. Substitui-se a realidade por uma versão higienizada e cheia de eufemismos. Uma espécie de pobreza com verniz. Uma miséria lavada e passada a ferro.
E há o paradoxo mais cruel: o plano diz querer combater a dependência, mas perpetua o modelo assistencialista. Não há qualquer proposta que permita aos mais pobres sair do ciclo da assistência.
Em matéria de habitação, Nuno Morna escreve que "o plano, como não podia deixar de ser, anuncia novas construções, reabilitações, operações integradas. Mas não se compromete com números. Quantas casas? Onde? Com que critérios? Para quem? Tudo é evasivo. As promessas são sempre em futuro composto: “será criado”, “será promovido”, “será articulado”. O verbo concreto, fazer, foi deixado de fora. E enquanto isso, a Madeira vive entre os extremos: o luxo do alojamento local e a ruína do arrendamento social, com os jovens empacotados em quartos de tecto baixo, sem saber se algum dia poderão ter uma casa onde caiba o silêncio.
Nada é dito sobre a inflação dos custos de construção, nem sobre os entraves legais e burocráticos que tornam qualquer iniciativa privada numa corrida de obstáculos kafkiana. Nada é dito sobre a degradação do parque habitacional existente, que é sistematicamente ignorado enquanto se sonha com novos projectos para fotografias de inauguração. Nada sobre os bairros que envelhecem em silêncio, com escadas a cair, elevadores avariados, esgotos entupidos e paredes que ouvem há décadas as mesmas promessas.
E depois, a cereja no topo do disparate: o “realojamento digno”. Como se o realojamento, essa prática medieval disfarçada de urbanismo humanista, não fosse muitas vezes apenas uma forma elegante de empurrar os pobres para sítios mais longe e menos visíveis. Como se não houvesse história, e memória, das vezes em que realojar significou isolar, silenciar, perder. Como se ainda não tivéssemos aprendido que uma casa não é só uma estrutura, é uma vizinhança, um café na esquina, um cão à porta, uma história de vida. Tudo o que o plano ignora.
Por fim, o mais grave: não há uma só linha sobre como tornar a habitação acessível para quem trabalha. Não há um plano para travar a especulação, nem um modelo que estimule a construção com custos controlados, nem um incentivo que transforme a propriedade em emancipação. A única coisa acessível neste plano é a sua vacuidade. Tudo o resto são palavras de gabinete, escritas por quem não perde o sono por não ter onde dormir".
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